O texto abaixo é de autoria de Odorico Tavares, do livro "Bahia, imagens da terra e do povo" :
align="justify">" Pelourinhosexta-feira, 13 de março de 2009
Eis a massa imensa e harmoniosa de edifícios dos séculos XVIII e XIX, marcada pelas torres da igrejas. É o Pelourinho, como um lago onde confluem as águas das mais variadas fontes da humanidade baiana.
Eis os velhos sobrados dominando a vastidão do casario se estendendo pelas colinas vizinhas, juntando-se um todo perfeito, e as igrejas acolhendo e dando força e grandeza ao ambiente, num majestoso decor. Estão adiante o Carmo, a Ordem Terceira, o Passo e, aqui, na praça, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
A beleza da praça é pra ser sentida, com tranquilidade e vagares, depois do choque inicial: o grande triângulo com sua base ao alto, descendo, escorregando ladeira abaixo até chegar ao encontro do Taboão com a Baixa dos Sapateiros. Pois é esta praça, tão impressionante, com suas pedras negras e irregulares, com seus declives acentuados, um lago, repitamos, onde confluem as águas das mais variadas fontes da humanidade baiana. O Taboão, o Passo, a Ladeira do Carmo, o Maciel, a Porta do Carmo, a Baixa dos Sapateiros, a Rua das Flores, Laranjeiras, São Miguel, são rios que encontram a sua foz neste lago. E aí vão dar as suas águas que se confundem, que se revolvem, que circulam, o que há de autêntico e de característico na palavra povo. Durante todas as horas do dia, o tráfego incessante: operários e carregadores; verdureiros e funcionários públicos; marinheiros e soldados; engraxates, motoristas, marceneiros, prostitutas, comerciantes, padres, mães e pais-de-santo. E vêm de todos os lados e vão parar os seus mais variados misteres. E sobem e descem a ladeira, e sobem e descem destes sobrados, onde se goza e se sofre, onde se ama e se odeia, onde circulam ventos e tempestades das paixões humanas. Águas serenas e águas revoltas, mansas correntes e agitados rios -homens, mulheres e crianças, vêm de todas as partes e vão dar a este lago para que integre a sua beleza, nem sempre serena, muitas vezes trágica, mas beleza que não se repete e não cansa.
Pela manhã, as cores múltiplas de pequena feira, de gente modesta se abastecendo nos tabuleiros e nos balaios, ali perto da igreja, e que vai morrer na entrada da Baixa dos Sapateiros. E se compra e se vende, e se discute e se deblatera, e se confraterniza e há o riso franco, a raiva explodindo, o impropério e o gracejo no ar. E há os que se detêm e os que passam, os que são moradores deste profundo território humano e os que são transeuntes fortuitos, os que amam e os que temem as suas proximidades. Às tardes serenas, as crianças- senhoras da praça- as sombras descendo, os moradores às portas e às janelas, os pequenos comerciantes, tranquilamente nas lojas dos mais desconcertantes negócios, os artesãos nas oficinas dos mais variados misteres.
Chega a noite e, na sua primeira hora, o movimento mais intenso: cansados, passam todos de sua jornada para o recolhimento dos lares, passam os que procuram as aventuras da primeira hora noturna; passam os temerosos dos seus escusos encontros. Passam os que vão às preces nos templos em torno; passam os que ansiosos aguardam a casa para o sossego noturno. Pretos e brancos passam e passam sírios e judeus. E seguem, e participam destas corrente vindas das mais variadas fontes da humanidade baiana que vem dar, nem que seja por um momento, a este lago da mais surpreendente e da mais grave beleza.
Já é noite. As luzes noturnas refletem nas fachadas dos sobrados e sente-se a força da magia que sobe, e penetra, e circula, e se infiltra por cada uma de suas escadas, de seus andares, de seus quartos. Noite alta, madrugada que chega, e apenas o recorte soberbo do casario e das igrejas, o luar batendo e refletindo nas pedras negras e brilhantes da praça. Uma outra luz acesa; rumor em crescendo, pertubando o silêncio majestoso na sua grande música; há, lá dentro, os pares fartos e satisfeitos; a criança que sofre e chora a sua doença; o drama da vida mal vivida; a prostituta que se vende; o amor de sempre com fome e sem dinheiro; a tarefa interminável para o dia que se aproxima; o estudante debruçado sonhando com glórias de um duvidoso futuro. Que sabemos que se passa em cada um destas tantas janelas? Que sabemos o que trará o dia para cada um dos seus moradores, força e poder de um povo?
Na praça deserta, na humanidade pressentida, nos ares batidos, no luar presente: a visão dos dias passados, os dias de condenados a açoites públicos e castigos infamantes, Pelourinho da degradação do homem. Não mais a coluna de pedra em que se açoitava o negro, mas nas noites de serenidade, como que se movimenta ela, solta no espaço, como que se vem quebrar ao pé de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a santa protetora dos pretos baianos, o Seu templo edificado na praça, refúgio dos pescadores, juíza dos condenados, infinito amor e misericórdia para toda uma gente.
Praça de muita grandeza, de muita beleza, de muito sofrimento, de muito amor. Que o visitante saiba que ela não tem somente a face exterior que revela, como um assombro. Há a humanidade, trágica por vezes, nas suas ruas e no interior de seus sobrados."
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